Suponho que por estas alturas já tudo tenha sido dito e explicado em relação à violência na África do Sul. Se junto a minha voz, ou a minha escrita, é simplesmente por uma questão de imodéstia, como sempre, aliás. Tudo foi dito, é verdade, mas não por mim. De entre as várias coisas que foram ditas figuram tentativas de explicação do que levou gente por quem o nosso país verteu sangue e lágrimas, para além de adiar o seu próprio bem-estar, a ver em nós o motivo do seu infortúnio. Porquê, porquê, porquê? Esta é a pergunta que fomos repetindo enquanto cheiravam corpos queimados vivos, enquanto refugiados zimbabweanos desesperavam perante a questão de saber onde ir e enquanto milhares de moçambicanos afluíam às nossas fronteiras à procura de socorro e refúgio na pátria amada que pela exiguidade de oportunidades que lhes oferece os havia obrigado a tentar a sorte lá no Djoni.
Porquê, porquê, porquê, para o leitor que perdia noites em discotecas nos anos noventa, é o refrão da célebre passada de Swit. Depois de uma noite bem passada alguém ainda tem o desplante de nos fazer o wassu-wassu. Porquê? Mas que pergunta! Justamente porque a noite foi bem passada e esse alguém quer mais noites assim, tem que nos meter na garrafa. Perversamente, gostava nesta reflexão de perguntar se as nossas atenções não estarão, como no caso de Swit, a concentrar-se em demasia no lado errado da questão. Por que é que os sul-africanos nos fizeram isto? Pobres mal agradecidos? Vítimas das desigualdades internas? Desesperados por nunca mais verem os frutos do fim do “apartheid”? Memória curta? Ou simplesmente revelação de uma sanha assassina própria do africano, a famosa negrofobia ou afrofobia?
E supondo que um destes palpites esteja correcto, e depois? Em que é que nos ajuda a perceber o nosso próprio infortúnio e a nossa própria vulnerabilidade como cidadãos? O que se vai seguir à confirmação de que nos trataram selvaticamente em protesto contra o seu próprio Governo? Vamos mandar uma missão diplomática para falar com o Governo sul africano para melhorar as condições de vida dos seus cidadãos? Vamos nos empenhar mais no desenvolvimento da África do Sul? Ou vamos proibir os nossos compatriotas de lá porém os pés?
Confesso que não percebo a nossa mentalidade. Percebo a indignação que sentimos bem como a necessidade que temos de a mostrar. Não percebo por que temos esta tendência de perdermos de vista o que é essencial num assunto e concentrarmos toda a nossa atenção no que é supérfluo. Ou no que não podemos mudar. Já foi assim no período imediatamente a seguir à independência. Andamos constantemente a falar dos maus de fora (imperialismo, apartheid, etc.) e deixamos de nos concentrar em nós próprios e na responsabilidade que temos pelo nosso próprio destino. Quando finalmente acordámos desse pesadelo nos meados dos anos oitenta, começámos a progredir, ainda que aos encontrões como é normal quando um pobre avança que é quase sempre tropeçando. A violência de que os nossos compatriotas na África do Sul estão a ser vítimas tem causas internas sul-africanas que as autoridades daquele país “irmão” tarde ou cedo vão apurar e, quem sabe, resolver. O que nos devia interessar saber, e ser objecto de debate na nossa esfera pública, é o que nós devemos fazer para que os nossos compatriotas não sejam tão vulneráveis quanto têm sido além-fronteiras, mas também dentro do país. Não estamos perante um problema de violência xenófoba, mas sim de cidadania.
SER MOÇAMBICANO
Quando, entre nós, o tema é definir a moçambicanidade muitos de nós começamos aí a desfiar belos discursos sobre as nossas tradições culturais, sobre a nossa resistência secular a não-sei-quantos e sobre a nossa hospitalidade temperada pelo sal das águas do Índico. Não admira, pois, que muitas vezes essas discussões desemboquem em essencialismos do tipo de querer saber se é possível ser moçambicano sem ter passado por certas experiências, estilo diga-me quem são os teus avôs, dir-te-ei se és moçambicano ou nacional. O que estes belos discursos têm em comum é, na verdade, uma tendência bastante nociva de recusar articular a definição do moçambicano com o Estado dentro de cujas fronteiras ele vive. A famosa “moçambicanidade” é uma artimanha que alguém mal-intencionado inventou para nos impedir de falar de cidadania enquanto conjunto de direitos.
Ser moçambicano é ser cidadão deste país. E isso significa que o que nos define não é, num primeiro momento, nada emocional, nem cultural, mas sim direitos consagrados na nossa Constituição e que explicam a existência do Estado. Somos moçambicanos porque confiamos a protecção da nossa dignidade humana a todos os outros que também tomaram a mesma decisão e aceitam a necessidade de institucionalizar essa dignidade por via do reconhecimento de direitos inalienáveis através do contrato que é a Constituição. Somos moçambicanos porque temos direitos, ainda que isso não pareça evidente. Um dia teremos direitos por sermos moçambicanos, razão pela qual muitos saiem e chegam mesmo a mudar de nacionalidade para poderem ter direitos. Mas o que estas ideias aparentemente desconexas querem dizer é que a política e toda a sua razão de existência residem no reconhecimento deste princípio simples: somos moçambicanos porque temos direitos.
Não preciso de enumerar esses direitos, tanto mais que são facilmente acessíveis no nosso livro básico. O importante aqui são as implicações práticas desse princípio bem como a questão bem bicuda de saber até que ponto a nossa política se constitui nesse reconhecimento. As implicações práticas são simples de tratar. A pergunta que devemos colocar é de saber se os nossos órgãos de Estado têm como razão de ser a garantia e protecção dos nossos direitos. Têm? A Polícia existe para garantir a nossa segurança física? Fá-lo? Os tribunais existem para garantir o nosso direito à justiça? Fazem-no? A liberdade de Imprensa existe para garantir o nosso direito à informação? Consegue? Reparem que a ideia de colocar estas perguntas não é de depois constatarmos que nada disso acontece e, portanto, concluirmos que estamos mal mesmo.
Que estamos mal, estamos. Mas só isso não basta. A ideia é sim de podermos perguntar o que devemos fazer para que os órgãos que existem para garantirem e protegerem os nossos direitos o façam. A substância da política está aqui. A racionalidade do programa eleitoral está aqui. Prometam tudo quanto quiserem, mas respondam à pergunta de saber se essas promessas protegem e garantem os nossos direitos.
A política é uma conversa sobre as condições de usufruto da cidadania. Por vezes a conversa é acrimoniosa, por vezes tediosa, e outras vezes ainda apaixonada e interessante. Tudo isso tem acontecido na Assembleia da República, na Imprensa e em todos os fóruns de debate que fazem a nossa esfera pública. E é assim que as coisas são. Portanto, se olharmos para as coisas a partir deste ponto de vista, podemos facilmente começar a ver o que interessa discutir a sério em relação à violência de que os nossos compatriotas estão a ser vítimas. Afinal, trata-se de violência contra gente sem direitos sob o olhar impávido de muitos de nós.
Fonte: Jornal Notícias
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