segunda-feira, 13 de outubro de 2008

As Inconfidências dos Homens, de Rosa Langa


A OBRA de Rosa Langa “As Inconfidências dos Homens” é uma colectânea da arte de performância e dos seus cultores. À excepção de dois artistas músicos estrangeiros que não escaparam ao crivo avassalador das perguntas inconvenientes de Rosa Langa, a saber, o Bonga de Angola e o português Rui Veloso, esta obra constitui um verdadeiro contributo para o conhecimento da cultura nacional.

Nesta antecâmara da obra que me associa a esta grande ventura de Rosa Langa, me proponho a sugerir algumas leituras das múltiplas que se podem fazer. Ei-las.

A busca obsessiva do sentido da vida, da relação com o outro, (homem vs. mulher), do significado da fama, do amor, da morte, de Deus e da Política, serve de texto porte-manteau, arqui-texto ou de “pré-texto”, como diria Almiro Lobo, de que Rosa Langa faz recurso na sua obra. Por via disso ela prende o leitor e condu-lo para o mundo da introspecção psicanalítica, isto é, da transladação e manipulação catártica do íntimo, feita com arte e génio que consiste no jogo de perguntas sobre assuntos que mesclam de forma conflituante o mundo do Id, (subconsciente), com o do Ego, (consciente), e deste com o do Superego, (normativo social), produzindo, qual faísca dos nimbos de Outono, uma descarga libidinal com sabor a agridoce, uma “inconfidência” feita matéria de consumo público num tom literário-linguístico tão expositivo e dramaticamente “violentador” quanto educativo.

Neste aspecto a obra desperta no leitor uma espécie de intertexto estabelecendo uma certa relação isotópica com as obras de Kassotche Florentino Dick no tratamento e manipulação do sexo e da sexualidade. Todavia, sob ponto de vista das possibilidades de manipulação da literariedade e dos recursos para a construção da imagética textual, Rosa Langa corre mais riscos.

Ao enveredar pelo estilo-género “entrevista”, Rosa Langa opta por um caminho tão elusivo quanto escorregadio porquanto as entrevistas exigem dos interlocutores “espírito de presença”, isto é motivação. Por outro lado, no ângulo literário, as entrevistas, para além do arqui-texto (montado na imagética do leitor sugerido e conectado pela “encenação narrativa” e dos comentários da autora em cada cena), revelam-se parcimoniosas a elevações estilísticas sendo o documentário a paróquia de sua predilecção.

Rosa Langa supera estas dificuldades e leva, de cena em cena, o leitor a situações de angústia, ansiedade e prenhe de sede de saber do que vem depois, até ao fim da obra. Para o efeito, ela recorre a três estratagemas, a saber, o arsenal jornalístico, os temas objecto das entrevistas e a sua sagacidade feminina que a leva a conseguir o que ela quer mesmo perante o homem com a maior “disfunção eréctil”.

Em termos de conteúdo, a obra pode ser lida em três dimensões. Uma dimensão de cariz almanaquico-documental da cultura e dos seus cultores, uma dimensão catártica e, por fim, uma dimensão inquisitiva, ou melhor, contemplativa sobre o património humano e humanístico que a autora transmite ao leitor.

Na primeira dimensão, a obra de Rosa Langa apresenta-se como a pioneira na sistematização documental à guisa de almanaque nacional da arte e dos artistas moçambicanos. Como uma colectânea, naturalmente, a obra de Rosa Langa é uma obra aberta. Sujeita a revisões e adicionamentos. À excepção de Kalungano e de José Craveirinha, escritores e poetas, e do pintor Noel Langa, a obra de Rosa Langa parece privilegiar aos artistas e às artes de performância, dança, música e canto.

Ela percorre as cordilheiras, as montanhas, os planaltos e os vales da nossa cultura e expõe de forma original e catalogada os valores, os talentos, as contradições e as ambiguidades que a nossa cultura nacional encerra. Expõe de forma gráfica o mundo dos artistas e como estes se vêem e vêem o mundo.

A obra de Rosa Langa apresenta-se, desta feita, como um contributo valioso seja como um catálogo ou base de dados sobre os artistas e sobre a cultura moçambicana, seja como uma fonte importante para a definição de uma estratégia de relacionamento do Estado com os artistas que busque assumi-los verdadeiros parceiros na construção da consciência e do orgulho nacionais.

Na dimensão catártica a obra de Rosa Langa coloca o mundo às avessas. Cada entrevista é um quadro pintado com as cores mais diversas mas tendo como pano de fundo o homem na sua dimensão total, isto é, na sua relação com o sexo oposto.

Rosa Langa consegue estimular e despistar o ego e o superego dos seus personagens com as perguntas formuladas de forma tão esquematicamente imprevisível que acabam se expondo e expondo o seu íntimo, os encantos e desencantos da sua vida, as ambições, as fobias. Ela cava, vira e revira a vida do homem. Mexe com a infância, com a arte, com a fama, com o dinheiro, com o amor e com a morte. O objectivo? Saber do homem o lugar em que a MULHER ocupa na sua vida. Explora e desmistifica “as coisas”: o sexo, a morte, a traição conjugal, a beleza feminina, enfim, tudo o que no subconsciente biológica e ou animalescamente persiste e insiste em se concretizar mas que o consciente e o social normativo reprime e impede. É uma catarse induzida, uma espécie de Kamasutra com o selo “made in Mozambique”. Uma obra cuja leitura em voz alta de algumas passagens não se recomenda na presença da sogra. Uma obra para maiores de 22 anos!

Os efeitos desta abertura ao mundo do inexpressável são logo visíveis tanto para os artistas feitos personagens da obra quanto para o leitor: uma descarga de consciência, da libido, uma sensação de alívio e de distensão. Uma oportunidade de falar. De resgatar a liberdade de dizer coisas reprimidas.

A resistência e o medo de as pessoas serem levadas à profundidade do seu íntimo ou às encruzilhadas da vida em que se deram mal é visível em todos os entrevistados. A obra de Rosa Langa revela assim o quão preconceituoso é o mundo em que vivemos. E mais. A obra de Rosa Langa traz à luz a visão que os homens têm da mulher e nesse “entulho de percepções” da pessoa mulher se desdobra em escamas a dura verdade que a luta pela emancipação da mulher e pela igualdade de género vai perdurar ainda mais.

Sob ponto de vista contemplativo sobre a obra e a autora da mesma fica-se sem jeito evitar perguntar a motivação e o objectivo final desta aventura. As respostas são, naturalmente, plúrimas.

A obra de Rosa Langa é reveladora da paixão que a autora nutre pelo jornalismo cultural. Como Jornalista de mão cheia, Rosa Langa, assume o papel instrumental para a exposição dos artistas dirigida aos governantes onde colocam os seus encantos e desencantos sobre gestão e direcção da Política Nacional da cultura. Ela coloca-se no pináculo do jornalismo cultural porquanto o seu trabalho é revelador de uma pesquisa aturada e uma entrega pessoal na busca dos conteúdos.

Como mulher, Rosa Langa aceita “expor-se” ao mundo dos homens e deles ouvir as mais incongruentes, grotescas e diversificadas visões e alucinações sobre ela. Ela resgata assim, a imagem da mulher mãe, mulher esposa e mulher companheira. Ela humaniza a imagem da mulher que por diversas circunstâncias da vida se vê compelida a se atirar ao mundo da prostituição.

Rosa Langa revela nesta obra a sua grandeza humana e humanística ao se assumir uma verdadeira combatente do VIH/SIDA. Ao denunciar comportamentos de risco muitas vezes associados a vida dos artistas ela contribui para a educação da sociedade sobre a necessidade de fazer o teste e, quando a ocasião faz o ladrão, do sexo protegido.

Por isso, Rosa Langa, ela de perfil físico feito de silhuetas que escapam as lentes mais magnificadas, se constrói nesta obra numa figura de mulher lendária, gigante, uma mulher com M maiúsculo.

JOSÉ MATEUS MUÁRIA KATUPHA

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